segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A crença de que a felicidade é um direito

   Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se
tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando
para virar gente grande, percebo que estamos diante da
geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais
despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades,
despreparada porque não sabe lidar com frustrações.
Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia,
despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque
conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque
desconhece a fragilidade da matéria da vida.
   E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a
acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi
ensinada a criar a partir da dor.
   Há uma geração de classe média que estudou em bons
colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior
e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve
muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a
ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria
apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de
trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um
pai ou uma mãe complacente, que tudo concede.
   Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que
queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não
acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e
boa parte se emburra e desiste.
   Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e
adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada
de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para
conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito.
   Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos.
   Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia
a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os
insistentes. Por que boa parte dessa nova geração é assim?
Penso que este é um questionamento importante para quem está
educando uma criança ou um adolescente hoje.
   Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade
é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de
muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que
fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de
todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização
nem reciprocidade É como se os filhos nascessem e
imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes,
frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal.
   Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante
que os filhos compreendam como parte do processo educativo
duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a
falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento?
   Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os
limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades
individuais? Nossa classe média parece desprezar o esforço.
Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce
pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa.
   Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado
com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou,
passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de
Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais.
   Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C,
que ainda precisam assegurar seu lugar no país. Da mesma
forma que supostamente seria possível construir um lugar sem
esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível
viver sem sofrer.
   De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e,
como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao
futuro que deveria estar garantido.
   Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade
é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma
pista para compreender a geração do “eu mereço”.
   Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de
espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é
como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda
para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente.
Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm
o menor preparo para lidar com a dor e as decepções.
Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações
– e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo
o que quer. A questão, como poderia formular o filósofo
Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a
vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não
fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece
deixando nenhum chão.
   Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce
ou deveria crescer – este momento é apenas quando a
condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no
confronto com os muros da realidade.
   Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos
espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias
por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do
pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir
aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar
de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado?
Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos
espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo,
porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto
familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
   Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém
está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas
e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar.
E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais
cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo
o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que
ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
   Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque
existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de
relação pais e filhos podem ter?
   Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o
sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se
a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem,
passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas
materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais
cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que
sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na
própria pele dia após dia.
     É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se
desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém
pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar.
E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o
jogo funcionando.
   O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver
uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão
perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro
de desencontros  anunciados. E mais sofrem porque precisam
fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que
se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a
frustração que move, mas aquela que paralisa.
   Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta,
com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto,
percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a
realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem
tem coragem.
    Não é complicado porque você vai ter competidores com
habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar
aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso
pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É
viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas.
 Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
   Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão
importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um
Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre
poderá contar comigo, mas essa briga é tua”.
     Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é:
“Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com
medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando
descobrir”.
   Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode
significa dizer ao seu filho que você não confia nele
nem o respeita, já que o trata como um imbecil,
incapaz de compreender a matéria da existência.
   É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para
que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho
merece tudo simplesmente por existir, paciência.
    De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que
vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia.
   O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de
lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo – seja a de abrir mão
dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo,
porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir
para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
   Crescer é compreender que o fato de a vida ser falha
não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o
que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo
injustiçado porque um dia ela acaba.

Texto de
ELIANE BRUMJornalista, escritora e documentarista.
Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.
É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios),
A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007)
e O Olho da Rua (Globo).

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